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terça-feira, agosto 10, 2004

A hermenêutica da práxis metodológica do contexto fenomenológico.  

O que o leitor diria de um livro cuja proposta é abordar o futebol como uma metonímia da sociedade, opondo samba e futebol arte a Wagner e futebol-força, tudo isso sob a ótica do fantástico João Saldanha e tendo como sobremesa o conjunto de suas análises sobre o desempenho do Brasil na Copa de 82? “Fantástico” diriam os amantes da sociologia. “Sensacional”, concordariam os amantes do futebol arte. “Esplêndido”, assinariam os sausosistas de plantão. Pois bem, o livro em questão é “João sem medo – Futebol arte e Identidade” de Eduardo Manhães e nos próximos parágrafos veremos se a interessante promessa acima descrita é ou não cumprida.

O autor propõe-se a dissecar o entendimento de João acerca do jogo de futebol, relacionando-o com a cultura brasileira. Para facilitar sua tarefa, trata de aproximar-se do mito ao dizer que Saldanha foi amigo íntimo de seu pai. A seguir, apresenta em tópicos o que supostamente seria o fio condutor da narrativa que se segue: o craque; a escalação; o preparo físico; a técnica e a habilidade; o jogo ofensiovo e o defensivo, fatores externos como política e negócios; o equilíbrio emocional; o sapato alto; o jogo de equipe e o individualismo. Até aí tudo bem, a idéia é sensacional e a intenção, a melhor possível. Mas como muitas coisas na vida o livro desanda completamente quando tem início a execução propriamente dita da idéia.

O que mata o livro de Manhães é que ele é acadêmico demais. Confuso demais, complicado demais. Ao invés das intermináveis 139 páginas, a obra poderia ter tranquilamente 80. Passagens como o objetivo do livro (os tópicos listados acima), a formação de Saldanha, a divisão entre as diferentes correntes de pensadores são repetidas exaustivamente. O texto simplesmente não flui, e para isso colabora a infinidade de citações de que o autor lança mão. Excelentes referências como Sérgio Buarque de Hollanda, Roberto DaMatta, Antônio Cândido, Foucault e Marilena Chauí deixam de ser exatamente isso, referências, e sobrepõem-se de uma tal maneira à opinião de Manhães que num dado momento fica quase impossível distinguir o que é citação do que é a opinião do autor, tamanha a frequência com que as tais referências ocorrem. Outra consequência imediata é que o próprio Saldanha é “sufocado” durante o livro. Quase não se fala do João sem medo que emprestou seu nome à obra. E quando isso acontece, a abordagem é superficial, trazendo à tona opiniões e críticas que qualquer um que já leu uma matéria Placar a respeito da tragédia do Sarriá já conhecia. Por exemplo, as críticas à falta de um ponta direita, à indefinição tática e à extenuante preparação física da equipe liderada pelo mestre Telê Santana. Para essa finalidade a leitura ideal seria “O trauma da bola”, livro mencionado por Manhães e que realmente fala de João Saldanha.

Mesmo assim, o livro propicia momentos aproveitáveis. É atual a teoria segundo a qual, no final das contas, o que decide é o talento puro, que no livro é a soma de técnica (fundamentos), habilidade (fundamentos usandos para transpor um obstáculo) e criatividade (maneira original e imprevisível de combinar os dois primeiros). Vide o corta-luz de Rivaldo que os alemães estão tentando entender até hoje. Também pertinente é a valorização do equilíbrio emocional como fator determinante para a vitória. Além disso, é bastante interessante a transposição da luta de classes para o mundo do futebol, onde a oligarquia é representada pela cartolagem e tenta a todo instante manter sob controle o proletariado formado pelos craques e torcedores. A própria oposição entre uma cartolagem incompentente e craques que decidem mundiais é um tema bastante atual explorado pelo autor. Há outras idéias e analogias bem estruturadas na obra, como o “assujeitamente do craque” que representa a possibilidade de ascensão social que os jogadores têm (muitas vezes a única) e a correlação entre capoeira, samba e sensualidade para explicar o molejo de cintura e quadril que nossos craques desfilam mundo afora. Mas nada muito profundo.

Num balanço geral, o livro deixa muito a desejar. A linguagem é complicadíssima, há diversas frases que agonizam por 8 linhas até chegar ao ponto final, mesmo a revisão deixa a desejar, por incrível que pareça. Além de ininteligível, a obra peca também no quesito objetividade: a tal estrutura descrita nos tópicos nunca é abordada e ao final tem-se a impressão que o autor associou-se à figura de Saldanha, jamais analisada, para tornar o livro mais atraente. Alguém que não soubesse o nome e não tivesse a capa da obra dificilmente diria que se trata de um estudo sobre as idéias de João Saldanha. Infelizmente o autor deixa a impressão de “pseudointelectual”, figura condenada por ele mesmo em seu texto.

A premissa básica do comérico é: jamais prometa o que você não pode entregar. E “João sem medo” nega por inteiro essa regra elementar. Esta resenha ao menos denuncia esse equívoco e previne eventuais leitores interessados. A propósito, a palavra “hermenêutica”, uma das mais mencionadas no livro, significa “Interpretação do sentido das palavras”. Que bela ironia.

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