<$BlogRSDUrl$>

segunda-feira, outubro 18, 2004

Simples como um gol do Baixinho 

O livro “Futebol ao sol e à sombra”, do uruguaio Eduardo Galeano, é uma ode ao futebol. Perna-de-pau confesso, Galeano troca os pés pelas mãos para melhor declarae seu amor pelo esporte. Partindo de uma idéia despretensiosa, o autor construiu uma obra sedutora e que magnetiza o leitor às suas 257 páginas de puro lirismo.

O objetivo é narrar, em ordem cronológica, a evolução do futebol desde a China de cinco mil anos atrás até o corta-luz de Rivaldo para o gol do Fenômeno em Yokohama. Para tal, o autor lança mão de contos curtos, com três páginas no máximo. O início do livro não anima muito o leitor, pois a descrição da bola, do árbitro, da torcida, dos personagens do espetáculo em geral e da própria históra do jogo é um tanto quanto enfadonha. No entanto, basta passarmos aos anos 20 que a situação muda radicalmente e o tem início uma deliciosa retrospectiva. Os tais contos curtos são determinantes para tornar o texto leve, dinâmico e extremamente agradável.

Galenao retrata de maneira impecável a mitologia que faz do futebol uma paixão mundial. Os pequenos “causos” descritos transpiram poesia e são permeados pelas reminiscências de um garoto eternamente inebriado pelo futebol. O foco é sempre o craque, retratado como o artista que compõe, em meio a seus lampejos e norteado pelo instinto e pelo improviso, a obra-prima do jogo. O resultado disso são textos fabulosos sobre todos os magos do futebol, do espanhol Zamora em 1917 a Ronaldinho Gaúcho. Muitos relatos descrevem gols ou jogadas geniais de uma maneira enxuta e original: ”Gol de Maradona. Foi em 1973.” para, cinco ou seis frases depois, brindar-nos com o clímas do lance fabuloso.

O maior diferencial de “Futebol ao sol e à sombra” é o fato de ter sido escrito por um estrangeiro. Inevitavelmente os autores brasileiros flertam com o ufanismo, de modo que as obras geralmente têm início em 50 ou 58 e grande parte dos livros se presta a enaltecer os nossos mitos e conquistas apenas. Galeano traz de maneira memorável o futebol uruguaio bicampeão olímpico, mas destaca ainda mais o lendário futebol argentino dos anos 40, além de provar que, por incrível que possa parecer, houve, sim, futebol-arte além das fronteiras tupiniquins. A copa de 50, por exemplo, é descrita somente após a página 100. Talvez por isso um leitor mais desavisado possa estranhar a pouca ênfase dada aos mundiais de 50, 54 e 70 e 82, exaustivamente narradas nas obras nacionais do gênero. Claro que são prestadas as devidas homenagens às épicas conquistas brasileiras e aos nossos heróis, mas é fantástico termos alguém de fora nos contando isso de maneira menos ufanista.

Além disso, o autor nos presenteia com um sutil senso de humor e um refinada ironia. Destaque para o episódio em que os longos calções de Giuseppe Meazza teríam caído na cobrança do pênalti contra o Brasil na semifinal de 38, para a comparação entre Garrincha e Chaplin, Gerd Muller e o lobo mau ou Romário e um predador fora da jaula. Merecem menção também as introduções a cada copa do mundo, contextualizadas historicamente do ponto de vista político, econômico e cultural. A partir de 62 repete-se o comentário “fontes bem informadas de Miami anunciavam a queda iminente de Fidel Castro, que ia despencar em questão de horas”.

Após a copa de 66 o ritmo do livro cai um pouco e os contos mais poéticos, os referidos “causos”, tornam-se escassos. Mesmo assim, percebe-se claramente por trás do livro uma crítica contundente aos cartolas que embalaram o futebol como um produto comercial (Havelange não goza de muito prestígio com o autor), a perda da poesia, a crise moral acarretada pela busca desenfreada do lucro e a recente covardia tática e mediocridade técnica. Engajado também na seara da sociologia, Galeano revela-se um romântico rebelde e, como tantos, saudoso dos tempos áureos que não voltam mais. Isso justifica as juras de amor prestadas a Diego Armando Maradona, o gênio mais idolatrado na obra.

O único aspecto que deixa a desejar é a revisão e a tradução descuidadas da obra, além de um errinho ou outro (o livro diz que a Argentina foi eliminada nas oitavas de final em 2002, por exemplo). Mas, no cômputo geral, o livro resume de maneira incrivelmente leve, lírica e simples a paixão que bilhões de pessoas nutrem por esse jogo chamado futebol.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?