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quinta-feira, novembro 18, 2004

180 milhões no divã 

A atividade do cronista esportivo, quando a pauta é seleção brasileira, em muito se assemelha à do psicólogo ou mesmo à do psiquiatra. No fundo, no fundo estamos diante de uma fantástica viagem pelo cérebro de Carlos Alberto Parreira. E, como é inerente à profissão, muitas vezes o analista sacrifica o próprio sono em prol do paciente, puxando para si os traumas que o treinador não consegue digerir.

Quarta-feira tivemos uma sessão de 90 minutos de pura terapia. O Brasil subiu a montanha, essa desculpa mistificada e aterrorizante, e perdeu do Equador. Bem feito, o resultado foi justo. Num primeiro tempo aberto e limpo, a equipe ameaçou jogar futebol, mas na segunda etapa resolveu presentear-nos com bocejos. O escrete jogou regido pela inércia e pela covardia que marcam a squadra Azurra. E isso se atribui a dois fatores distintos, porém relacionados: confusão de inteligência com covardia e pane criativa.

Carlos Alberto Parreira, nosso ilustre paciente, é um profissional frio, educado (por isso é tão duro criticá-lo), comedido, calculista (não confundir com “estrategista”, esse é o outro), um treinador que pensa antes de cada passo dado. Seu estilo de jogo prega a paciente troca de passes até que se descortine a oportunidade de gol. Parreira gosta de cansar os adversários, jogar com inteligência. Não foi o que se viu ontem. Com três volantes em campo, o Escrete renunciou ao ataque. Renato, o “Menino da Vila” mais assíduo na seleção, se escondeu. Kléberson esteve apagado e não foi o elemento surpresa pela direita que dele se esperava. Juninho também esteve muito aquém do que pode render. O Equador em nenhum momento forçou o jogo e mesmo assim lá estavam, dorminhocos, os três volantes do Parreira.

Do meio pra frente imperou a tal pane criativa, viva na memória de quem viu Brasil x Colômbia. Talvez vítima da altitude, talvez da “inteligência” de Parreira, talvez sendo coerente com a bolinha que vem jogando no Milan, Kaká esteve irreconhecível. Lento e burocrático, precisa recuperar-se logo se quiser manter-se numa das vagas mais cobiçadas do planeta. Afinal, se o Kléberson, apesar de reserva, é convocado pelas 5 estrelas na camisa, em breve terá gente pedindo a volta de Rivaldo. Falando no pernambucano, deveriam abrir uma exceção e deixar Ronaldinho Gaúcho entrar em campo com a camisa do Barcelona. O dentuço é o sol do time catalão, onde tudo gravita ao seu redor. Se é um problerma de órbita, se é síndrome de Rivaldo, o fato é que o Gaúcho é no Escrete um rabisco do jogador que se vê no Camp Nou. Sem criatividade, lento e preso, Ronaldinho vai aos poucos se tornando um jogador de dupla personalidade. A atuação de Ronaldo, o Fenômeno sufocado, não merece nem um par de linhas. Nossas estrelas européias devem voltar com vergonha pra casa, após terem perdido para a Letônia da América do Sul.

Covarde na armação, covarde nas substituições. Ora, se a demonizada altitude era o problema, por que esperou tanto para mexer no time? Ora, se o Equador não agredia, por que a troca inócua de um volante por outro? O Imperador Adriano teve longuíssimos 9 minutos para tentar reverter a tragédia anunciada. Enfim, aos 44m51s do segundo tempo, ao som de “olé” em Quito, o inesperado aconteceu. Parreira, o iceberg polido, proferiu um palavrão. Com um timaço em mãos, o treinador não agride e limita-se a esperar o erro do adversário. Anti-Felipão, o tetracampeão tem até aqui performance idêntica à de Scolari na mesma rodada das Eliminatórias passadas. Só que as características de uma Copa do Mundo favorecem o estilo do gaúcho.

Parreira tem tara pelo empate. Seus sonhos eróticos são povoados por legiões de volantes. É conservador a tal ponto que nasceu para trabalhar na FIFA ou no Vaticano. Acontece que quem pensa que o estilo de Parreira só nos causará sono e tédio se esquece que disputaremos uma Copa do Mundo e não uma Copa do Brasil, onde a fórmula “vitória em casa, empate fora” é garantia de sucesso. Por isso, brasileiros, preparai-vos: em 2006 choverão empates. E vocês sabem o que empates significam numa Copa do Mundo. Esqueçam as 7 vitórias de junho. Parafraseando o mestre Telê Santana, quem entra para empatar, joga para perder.

terça-feira, novembro 09, 2004

A vida em 90 minutos 

- “Realmente, trata-se de um caso crítico. Em 35 anos de carreira, não me recordo de jamais ter visto algo parecido. O diagnóstico aponta uma deficiência de aprendizado crônica. Infelizmente creio que nossa única alternativa é encaminhá-lo para um insituição voltada a deficientes mentais. Frederico simplesmente não reúne condições para acompanhar os outros alunos. Caso siga frequentando a escola, será margininalizado pelos colegas, atrasará o ritmo das aulas e será um fardo para seus professores.”

E foi assim. Seco e frio como Romário diante das redes, o psicólogo da escola sentenciava Frederico à alienação perpétua. Tratava-se, afinal, de um caso perdido. Iam encerrando a reunião que mais parecia um julgamento da suprema corte, a mãe em prantos, quando Gabor, o professor de Educação Física, suplicou:

-“Eu tenho uma idéia que pode garantir a permanência de Frederico no colégio. Peço que me dêem três dias e, se não der certo, concordarei com a expulsão do aluno”

Ah, sim, Frederico. Frederico tem nove anos. Filho de uma hippie com um jornalista, nasceu de parto complicado e jamais conheceu o pai. Possivelmente o fruto indesejável de um amor inconsequente. Filho único, tímido, Frederico não tem amigos. Nunca teve. Aliás, pensando bem, Frederico tem uma única amiga, mais que uma irmã: a bola. A paixão que o menino alimenta pelo futebol, apesar de ultrapassar a fronteira do admissível, nunca chamou a atenção de ninguém. Abandonado pela mãe e criado por uma dessas avós italianas que só falam e não escutam, o menino apegou-se ao esporte como um náufrago a uma bóia. Se Frederico joga? Joga, claro. Mas jogando Frederico não passa de um joão do Garrincha. Frederico não tem talentos. Nunca foi desafiado, tem QI de lagartixa, foi alfabetizado aos oito anos, é um desastre em forma de garoto. Um desastre pronto a ser enviado a uma instituição para deficientes.

Voltando ao nosso colégio, o professor Gabor tinha uma idéia capaz de salvar nosso patinho feio. Ao ver Frederico debruçado sobre o livro de matemática em pleno recreio, o mestre perguntou:

-“Frederico, quanto dá 8x3?”

Após hesitar por cerca de longos 90 segundos, o burrinho respondeu:

-“42?”

Pronto, estava lançada a chance para Gabor comprovar sua magnífica teoria.

-“Frederico, se o Barcelona joga oito partidas e vence todas, quantos pontos ele soma ao final da oitava rodada da liga espanhola?

-“Ah, professor, isso é fácil demais. 24 pontos, claro. Com Ronaldinho desse jeito, Eto’o inspirado e com o Real comendo grama com aquela defesa capenga, esse ano não tem pra ninguém na Espanha...”

Fez-se a luz. Era isso. A partir desse dia, Frederico e Gabor eram como Pelé e Coutinho, Romário e Bebeto, Ronaldo e Rivaldo.

O colégio virou moleza para o novo garoto prodígio. Afinal, os EUA eram o Santos da segunda guerra, Newton foi o Pelé da Física, 11 de setembro de 2001 foi o Maracanazzo dos ianques, Darwin revolucionou a Biologia como Rinus Michel com sua laranja mecânica e todo mundo sabe que os planos econômicos no Brasil são tão eficientes quanto a dupla de ataque do Ibis. Como é que não tinham pensado nisso antes? Essa escola era mesmo uma sopa.

Mas a vida não é só escola. Num belo dia de outono Frederico conhecei a sua Elza Soares, a sua Daniela Cicarelli. E ela era perfeita. Esquelética, óculos “fundo de garrafa”, um leve bigodinho, acne pra dar e vender, e um conhecimento de futebol que deixava Frederico flutuar como só o beija-flor e Dadá Maravilha conseguem. Nosso craque entendia a vida muito melhor agora, mas a timidez ainda fazia marcação homem-a-homem sobre ele. Frederico desejava Talula ardentemente. Queria materializar em carne o que o lirismo era insuficiente para expressar. Só não sabia como. Decidiu aconselhar-se com seu eterno mentor:

-“Gabor, vou viajar com a Talula para praia neste final de semana. Mas, você sabe como é, o pai dela, o avô resmungão, o apartamento lotado, assim eu nunca chego lá...”

-“Frederico, você se lembra de Don Diego Maradona contra os ingleses em 86? Pois bem, meu caro. A sua praia é aquele estádio mexicano. A sua timidez é o meio-campo inglês, o avô é o último zagueiro e o pai é o Peter Shilton. Sacou?”

E noites depois aquela pequena praia no Gurujá assistiria à alvorada de um amor que não conheceria pôr-do-sol por muitos anos.

Graduado e casado, Frederico encarava seu trabalho na Fotoptica como uma Copa do Mundo. Mas vocês se lembram da economia brasileira, do ataque do Íbis e de como é dura a realidade tupiniquim. Num belo dia Frederico foi chamado à sala do seu gerente. Foi demitido como um técnico de time carioca no Brasileirão. No dia seguinte, lá estava ele, pontual e preciso como um lançamento do Gérson. Um colega mais próximo de Frederico veio falar-lhe:

-“Fred, o Ricardo não conversou com você ontem?”

-‘Sim, mas eu sou um bom profissional, já até ganhei a chuteira de ouro nessa loja e tudo mais...”

- “Fred, você acha que o Romário foi um bom jogador?”

-“Bom? O Romário é o gênio da grande área, Carlos Alberto.”

-“Eu sei. Mas, recentemente ele tem apresentado os resultados de antes, tem feito os gols decisivos que lhe deram a chuteira de ouro em 94?”

E a vida de Frederico transformou-se num Racing, num Botafogo, num Grêmio, num Torino. Seus dias de glória estavam sepultados. Aconselhando-se com um vizinho, entendeu que a situação em que flagrara Talula com outro vizinho no banheiro era como o gol do Túlio na final do Brasileirão de 95 ou como o pênalti no Luisão na primeira partida contra a Turquia.

Divorciado e sem filhos, a Frederico só restara mesmo o velho Gabor. Forte como Puskas aquele húngaro fantástico sofreu um repentino ataque cardíaco meses depois do ocorrido entre Talula e o vizinho banheirista. Desolado na porta da UTI, Frederico não comia, não dormia. Nem a Copa dos Campeões ele acompanhava. Por que a vida, que lhe dera tantas alegrias, lhe virava as costas dessa maneira agora? Após duas semanas de calvário, numa cinza manhã de inverno, o médico abraçou Frederico:

-“Infelizmente Gabor Radocza não resistiu e nos deixou na noite de ontem.”

-“Será que em três dias ele se recupera, doutor?”

Um enfermeiro menos desavisado que passava pelo corredor socorreu o atônito profissional de branco:

-“Frederico, você se lembra do destino dos times Olímpicos do Brasil contra a Nigéria em 96 e Camarões em 2000?”
Foi a gota d’água para nosso herói. Numa decisão de bate-e-pronto, Frederico decidiu ir à França. Vendeu casa e carro e foi conhecer Paris. Não, ele não queria ver a torre Eiffel, não pensava em fotografar o Arco do Triunfo. Queria distância do Louvre. Mudou-se para Saint Denis, moraria e trabalharia onde a vida é mais fácil de ser vivida. Como faxineiro do estádio francês, o carisma “forrestgumpiano” de Frederico lhe garatiu acesso às tribunas de imprensa. Amealhou uma coleção de vídeos para exibir no telão e consolar suas noites solitárias nas arquibancadas. Na verdade eram poucos jogos, que ele repetia exaustivamente, noites a fio. Num ritual macabro, Frederico via Brasil x Uruguai em 50, Brasil x Itália em 82, Brasil x Argentina em 90, São Paulo x Vélez em 94, São Paulo x Once Caldas em 2004, entre outras tragédias. Por meses e meses o garoto da tabuada chorava sozinho diante de craques e platéias delirantes. Entendia agora como Freud, Nietzsche e Darwin tinham dado cabo da existência divina. A esses, Fred acrescentaria um assassino frio e calculista. Estrela do seu jogo favorito de Fred, Zinedine Zidane e sua arte corroíam a alma do fanático toda noite, impiedosamente. E assim, num lance de Petit, Frederico coroou-se com o cartão vermelho mais letal da história do futebol.

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