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domingo, março 13, 2005

O nobre e o plabeu na porta do céu 

Nova Iorque, 1o de outubro de 1977, uma tarde chuvosa de outono. O silêncio insuportável do vestiário contrastava com a ovação proporcionada pelos 75.646 presentes ao Giants Stadium. Na platéia, a câmera flagrava Muhammad Ali emocionado, Andy Warhol dizendo à imprensa que o Rei teria seus 15 séculos de fama e Dona Celeste, na segunda vez em que foi ao estádio ver o filho jogar, carregando em seu semblante o luto que dividiria a história do futebol em duas eras.

Alheio à comoção que emanava das arquibancadas, ele não sabia o que pensar. Por alguns instantes, seu mundo parou. Beckenbauer e Carlos Alberto ainda estavam no campo e a solidão lhe perfurava a alma. Decidiu tomar um banho. Foi então que mais um acontecimento inacreditável se sucedeu em sua vida. Subitamente, o espaçoso vestiário foi invadido por uma luz intensa, forte como 10 refletores. Assustado, ele saiu do banho, se enrolou na toalha e foi verificar. A luz era tão forte que ele não conseguia enxergar. No entanto, pode ouvir uma voz rouca à la Sean Connery sussurrar-lhe:

-Pelé...

Incrédulo, o rei do futebol respondeu:

-Senhor?!
-Pelé, desculpe interromper o seu banho num momento tão difícil, mas eu vim lhe buscar.
-Eh, me buscar?
-O seu reinado chegou ao fim, a partir de agora o Pelé dará lugar ao Édson Arantes do Nascimento. Esse mundo não faz mais sentido para você. Venha comigo e repouse no reino dos Céus.
-Senhor, eu não posso partir. Tenho famílias para criar e uma vida inteira para gozar.
-Não se preocupe. O Édson olhará pelos seus. Quanto aos prazeres dessa vida, nada se compara à vida eterna. São Pedro se aposenta esse ano e eu farei de você o novo guardião do meu reino. A você caberá decidir quem deve ou não entrar no paraíso. Agora venha rápido que o Kaiser já está entrando no vestiário e eu não quero que ele fique com ciúmes.

Seguindo seu instinto mais uma vez, Pelé ascendeu aos céus, de toalha e tudo. Foi recebido calorosamente e desde o início se deu bem com seus pares Michelangelo, Einstein, Thomas Edson, Sheakspeare e o próprio Dante. Realmente a vida no céu era um paraíso. No entanto, o rei não estava ali a passeio e a labuta o esperava já na próxima segunda-feira a partir das 09h00. Aproveitou o fim de semana para ser treinado pelo paciente São Pedro a respeito de suas novas atribuições e, mesmo apesar daquele friozinho na barriga que antecede o primeiro dia no emprego, achou que poderia dar conta do recado. Afinal, já conseguira proezas muito mais difíceis nessa (ou naquela) vida. Pegou a chave, vestiu a 10 e acomodou-se em seu novo local de trabalho.

Os portões foram abertos e um senhor se aproximou:

-Bom dia. Nome e nacionalidade?
-Marinus Hendrikus Jacobus Michels, Holanda.
-É uma honra recebê-lo, Rinus. Lote 22, terceira casa à direita.

O primeiro tinha sido uma moleza, mais uma vez a sorte jogara ao seu lado. Na seqüência, uma série de nomes fez o seu primeiro dia no novo emprego ser muito fácil. Passaram pela porta do paraíso: os galáticos Di Stéfano e Didi, que poderiam ter sido Pelé se não houvesse Pelé; Ferenc Puskas e Franz Beckenbauer, os Pelés húngaro e germânico; Mário Jorge Lobo Zagallo, o Forrest Gump com currículo de Pelé; e Lev Yashin, o anti-Pelé. O único caso que demandou um pouco de análise mas culminou em aprovação foi o de um antigo goleiro vascaíno de nome Moacir Barbosa.

Passaram-se alguns dias e o Rei já parecia confortável em sua nova função:
-Nome e nacionalidade?
-Paolo Rossi, Itália.
-Pelo atentado cometido contra a história do futebol, eu lhe condeno ao inferno.

Pronto, era sua primeira condenação. Pelé concluiu que era muito duro mandar jogadores para as labaredas eternas, uma vez que muitas vezes trata-se de uma questão de ponto de vista, como atestam os casos de Schiaffino, Ghiggia, Gerd Muller, Dunga, Roberto Baggio, Zinedine Zidane e muitos outros. Mesmo assim, o crioulo sentenciou sem dó todo o escrete alemão do mundial de 54, quase todo o plantel germânico de 74, quase todos os técnicos italianos e muitos zagueiros e volantes que deixaram cicatrizes em quem hoje dorme o sono dos justos no céu. Porém, nem só de jogadores viviam os arquivos do computador real.

-Nome e nacionalidade?
-Jean-Marie Faustin Godefroid Havelange, brrasileirrrro.
-Inferno. Próximo.
-Ricardo Teixeira
-Inferno.
-Telê Santana
-Bem-vindo.
-Emílio Garrastazu Médici.
-Fogo!
-Paulo Machado de Carvalho.
-Pode entrar.
-Eurico Miranda.
-Seguranças, por favor retirem esse homem daqui imediatamente.
-Nélson Rodrigues.
-Sinta-se em casa, Nélson.
-Juan Figer.
-Já pro inferno!

Pelé viu-se frente a frente com críticos, antigos desafetos, técnicos, parceiros e goleiros que por terem levado ou impedido seus gols fizeram dele o atleta do século. Todavia, sabia que um encontro em especial lhe traria um frio na espinha maior que o do pênalti do milésimo gol. Angustiado, levantava toda manhã pensando no fatídico e inevitável encontro. Lia jornais, acompanhava as notícias na Internet, ligava para uns amigos no caribe em busca de novidades. Num belo dia, o rei levanta a cabeça e dá de cara com um esférico interlocutor.

-Nome e nacionalidade?
-Don Diego Armando Maradona, argentino e melhor jogador do século 20, segundo pesquisa realizada pela Internet em 2000. Yo soy el Diego de la gente.

Nunca o paraíso tinha presenciado tamanho qüiproquó. Era cabeçada pra lá, cusparada pra cá, mão de deus na cara, soco no ar e tudo mais que o leitor possa imaginar. Devido à calamidade no sistema público de saúde do céu, Pelé e Maradona ainda tiveram que dividir o mesmo quarto no hospital, o que ocasionou mais alguns incidentes. Ambos foram, novamente juntos, ao banco dos réus, onde Pelé disse que substituira São Padro mas que não era santo e Diego por sua vez advogou em causa própria exibindo um DVD lançado recentemente com o resumo de sua brilhante carreira. Por fim a justiça divina suspendeu o gênio brasileiro por duas semanas e permitiu que o craque argentino se juntasse a Di Stéfano no céu.

Passada essa confusão, nosso guardião retornou ao batente. Na verdade estava mais tranqüilo, pois sabia que o pior dos encontros já tinha ocorrido. Considerava-se agora um profissional maduro e aproveitava os benefícios que o só o paraíso pode propiciar. Tocava seu violão e cantava para os colegas, curtia os jogos eliminatórios da Champions League, conhecia muita gente e até pensava em namorar. Já até pensava que o trabalho, apesar de importante, tinha se tornado monótono quando um dia avistou um senhor cujas feições lhe pareciam familiares:

-Nome e nacionalidade?
-Édson Arantes do Nascimento, brasileiro.
-Edson Arantes...Édson Arantes...Nascimento. Desculpe, qual a sua profissão, não estou reconhecendo seu nome...
-Eu sou empresário.
-E o que o senhor tem feito ultimamente?
-Olho, eu faço muitos comerciais. Também dou muitas entrevistas e faço prognósticos sobre futebol. Fui eu quem disse, por exemplo, que a Colômbia ganharia o mundial de 94, que uma seleção africana seria campeã do mundo e que o Brasil não seria campeão em 2002. No ano passado até elaborei uma lista com os melhores de todos os tempos. Há poucos dias disse que o Robinho pode se igualar ao Pelé e que o camisa 7 deveria ficar no Santos pois dinheiro não é assim tão importante em nossas vidas. Ah, também fui ministro e até lei eu fiz, apesar de muitos dizerem que ela beneficia os empresários e não os atletas.
-Senhor Édson, o meu sistema acusa que o senhor não possui uma história de glórias no futebol. O seu cadastro o qualifica como garoto-propaganda e palpiteiro de plantão. Infelizmente o paraíso está reservado aos nobres e por isso peço que o senhor se encaminhe ao purgatório, localizado no andar térreo, entende?

Como passava das 18h00, Pelé encerrou o caso. Desligou seu computador, pegou seu manto, sua coroa e seu cetro e trancou o escritório. Hoje à noite tinha um desafio contra o time do Diego.

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