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segunda-feira, maio 30, 2005

O futebol como um microcosmo. 

Em uma frase, o livro “Como o futebol explica o mundo” é a obra de um autor norte-americano que mostra como o esporte mais amado do planeta ajuda a escrever, por meio de suas agruras e virtudes, o inacabado e controverso livro da globalização.

Norte-americano? Livro sobre futebol? Sim, para efeito de esclarecimento, o Trivela ainda é um site especializado em futebol jogado com os pés, aquele inventado pelos ingleses. Ora, os mais afoitos diriam que o livro só pode passar 50% da mensagem a que se propõe, já que americano entende mesmo é de globalização apenas. Esse primeiro paradoxo aparente já revela um pouco da magia da obra. Exatamente por ter sido escrito por um americano, o livro de Franklin Foer comprova um dos princípios que almeja transmitir: o jogo é uma paixão sem fronteiras, cuja relevância dentro da cultura mundial não pode ser negada ou mesmo subestimada, para desgosto daqueles que o definem como um esporte idiota em que 22 homens correm atrás de uma bola. A segunda justificativa para criticarmos aqui um livro escrito por um norte-americano é a pobreza das opções oferecidas quando se pensa em livros sobre futebol no Brasil. Apesar da recente e crescente evolução em termos de qualidade e variedade, ainda é um desafio escolher uma obra interessante, embasada em fatos e, acima de tudo, isenta entre os lançamentos do gênero. Ainda predominam livros em que autores travestidos de torcedores apaixonados rasgam páginas e páginas de seda em homenagem ao seu time do coração. Se futebol é paixão, também pode ser objeto de análise de vez em quando.

Ora, que o futebol é o esporte mais amado do planeta todo mundo já sabia, onde está a novidade? A novidade está na abordagem original e na analogia com os outros tipos de paixão conhecidos. Ao nivelar o futebol com as religiões, o autor contrapõe conceitos como tribalismo, nacionalismo, conservadorismo e violência a cosmopolitismo, ausência de fronteiras, progresso e convivência pacífica. Conseqüentemente, o autor poderia ter deslizado na própria armadilha e flertado com o maniqueísmo, qualificando o futebol como uma poderosa arma do bem, iluminista e progressista, na luta contra o mal, ignorante e retrógrado. Nada disso. O futebol na visão de Foer não é nem o bem e nem o mal. Ele é o bem e o mal que permeiam a luta histórica pela abolição ou manutenção das fronteiras culturais.

O termo agruras foi escolhido para definir a obra porque, como que numa gradação, o livro parte de um pessimismo no que se refere à interferência do futebol em nossa história, para uma visão otimista em que o esporte ajuda a romper fronteiras e integrar as pessoas. Para ilustrar o “fracasso da globalização em reduzir ódios antigos ainda presentes nas grandes rivalidades em torno do esporte”, o autor mostra a participação significativa dos bárbaros torcedores do Estrela Vermelha nas guerras balcânicas e a ferocidade do hooliganismo no contexto do cisma religioso entre católicos e protestantes no Reino Unido. Além disso, as máfias merecem destaque nessa parte da obra. Os cartolas brasileiros são retratados como os insaciáveis cupins que, num mar de impunidade, passividade e promiscuidade, estão destruindo os alicerces do futebol mais talentoso do mundo. Os italianos também recebem atenção semelhante. Foer descreve o catenaccio, fala da importância estratégica da arbitragem e de como ela tem sido manipulada pelos nobres industriais que controlam a Juve ou pelo novo rico barão da mídia que gerencia o Milan.

As virtudes do futebol despertam a esperança no leitor após páginas e páginas de constatações frustrantes. No capítulo mais inspirado do livro, o autor discorre sobre sua justificada paixão pelo Barcelona. Permeada pelo idealismo, paixão, respeito à diferença e o cosmopolitismo, a história do clube nas palavras do americano demonstra de maneira incontestável como o futebol pode nos ajudar a construir um mundo mais tolerante. O próprio conceito de nacionalismo, duramente pisoteado no decorrer do livro, é revisitado, uma vez que o clube Catalão representa a comunhão perfeita entre o nacionalismo pacífico e tolerante com o cosmopolitismo e o progresso. Essa comunhão sacia outra questão visceral que a obra poderia suscitar nos leitores: a aparente incompatibilidade entre o instinto dos seres humanos de identificar valores comuns e se agrupar ao redor deles versus a globalização que se propõe a homogeneizar os valores e princípios culturais e mitigar as diferenças. Ainda na metade otimista da obra, temos a chance de ver como o futebol pode ser o estopim de uma revolução pacífica que levará a democracia, a liberdade e o progresso ao combalido Irã dos aiatolás.

Ao tentar explicar o inacabado e controverso livro da globalização, Franklin Foer comete deslizes perdoáveis, como construir um capítulo confuso e desinteressante sobre jogadores nigerianos que tentam a sorte na Ucrânia ou forçar uma conexão entre o futebol, o judaísmo e a globalização. No entanto, o saldo final é bastante positivo. Abrangente, o livro explora um tema manjado como a globalização sob um prisma original em que mistifica e dessacraliza o futebol. Mistifica ao mostrar que sua importância transcende o mundo dos aficcionados e dessacraliza ao retratar os malefícios que o futebol já causou ao mundo. Fruto de uma impecável pesquisa, o livro não pretende persuadir ninguém em favor desta ou daquela causa, apesar das claras convicções liberais e pró-globalização do autor. A constatação final é clara o suficiente: independente de ser amado ou odiado, de representar o bem ou o mal, o futebol é um dos elementos mais fortes para explicar o mundo atual. Anti-maniquesísta, o livro é um sopro de ar fresco para quem se acostumou à mesmice dos Chicos Languis nos programas esportivos de domingo à noite.

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