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domingo, outubro 30, 2005

À sombra das chuteiras imortais 

Nelson Rodrigues possuía a mente mais fascinante dentre os brasileiros que já escreveram sobre futebol. A maneira como ele tece suas apaixonantes crônicas pode a princípio frustrar um leitor desavisado. Nelson Rodrigues não era um analista, Nélson Rodrigues não era um comentarista, Nélson Rodrigues não era um crítico. Os entusiastas da estatística, da objetividade ou das rebuscadas análises táticas tendem a se chocar quando lêem o autor pernambucano. Como bem define Armando Nogueira no prefácio de “À sombra das chuteiras imortais”, Nélson foi o nosso Homero, sem tirar nem pôr.

Já quem leu “Manuelzão e Miguilim” de Guimarães Rosa terá mais facilidade em entender Nélson Rodrigues. Reza a lenda que Nélson sofria de miopia aguda, o que o impossibilitava de enxergar um escanteio que fosse, apesar da religiosidade com que ia ao Maracanã (estádio que hoje toma emprestado o nome do irmão do autor). Consequentemente, Nélson se viu obrigado a dar asas à sua imaginação para decifrar e retratar o que se passava numa cancha. Isso explica como o ficcionista tomou o lugar do comentarista. O manjar dessa “ficção” é apresentado ao leitor em “À sombra das chuteiras imortais”, onde o futebol é retratado como religião.

O livro traz 70 crônicas, escritas entre 26/11/1955 e 22/06/1970, um dia após a conquista definitiva da taça Jules Rimet. Justamente o período em que se deu a metamorfose na auto-imagem do brasileiro, que de vira-lata no Maracanazzo se tornaria tricampeão no estádio Asteca. Na verdade as deliciosas crônicas extrapolam o universo da seleção e do futebol carioca, que numa visão superficial parece ser os temas abordados no livro. Nélson escreve sobre o homem brasileiro e sua psique, sobre o microcosmo representado pelo futebol na nossa cultura e na nossa sociedade.

Alguns ingredientes sensacionais ajudam a construir o estilo inigualável e atemporal de Nélson Rodrigues. Para começar, tudo é hiperbólico. Nunca está em jogo apenas uma partida de futebol, e sim a honra do brasileiro, a alma do Fluminense ou a essência de um povo. As analogias geniais de Nélson reforçam esse estilo grandiloquente: Garrincha é Charles Chaplin, Pelé pode ser Mão Tse Tung, Amarildo pulou das páginas de Doistoiévski e determinada vitória da seleção é um quadro de Goya. Além disso os textos são de um passionalismo inacreditável. Nélson tem o dom de transformar um Fla-Flu numa ária de ópera, uma agressão num dilema shakesperiano e um amistoso no Morumbi num massacre no Coliseu. Esta combinação, temperada com um refinado senso de humor, confere aos textos um caráter mítico do qual nenhum outro autor consegue se aproximar.

O ufanismo é outra marca registrada do autor presente no livro. Nélson realmente acreditava que o tanque húngaro era inferior ao escrete brasileiro em 54 e que o futebol europeu se resumia a uma correria mecânica e burra. Mais do que simplesmente um nostálgico ou um romântico (o autor nega sê-lo), Nélson era um dramaturgo que se apoiava em sua miopia para transformar em teatro a mais despretensiosa pelada. Prova disso é seu apelo ao individualismo. Nélson abusa da mistificação e da construção de ulisses, hércules e napoleões para narrar feitos e conquistas do imbatível craque brasileiro. É interessante imaginar o que Nélson escreveria hoje sobre figuras como Cafu, Romário, Ronaldos e Felipão.

Em suma, “À sombra das chuteiras...” é muito mais do que uma agradável seleção de crônicas criativas sobre futebol. É uma epopéia impregnada de lirismo, paixão e aventura sobre a alma do povo brasileiro e sua mágica relação com o futebol. Isso tudo sob o prisma de um genial estudioso da explosiva combinação de sentimentos que tentam conviver dentro do ser humano. Quem se entusiasmar com a obra deve devorar também a biografia de Nélson, intitulada “Anjo Pornográfico”. Da mesma forma que não teremos outro Pelé, jamais veremos outro Nélson Rodrigues. Assim na terra como no céu.

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