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domingo, julho 09, 2006

"O clone" 

- Bem, rapazes, tenho o prazer de informá-los que foi definida a data do grande dia, o dia em que vocês receberão Cristo em seus coraçõezinhos pela primeira vez. A cerimônia da primeira comunhão está confirmada para o dia 17 de dezembro, às 15h00, na capela do colégio.

Naquele exato momento o mundo de Tadeu parou. 17 de dezembro? Como assim 17 de dezembro? Às 3 da tarde? Mas todo mundo sabe que o Santos joga a final do Brasileirão nesse dia, praticamente no mesmo horário. Seria mesmo possível? Por que irmã Celeste estaria fazendo uma monstruosidade dessas com um santista roxo que nunca tinha deixado de ver um jogo do time do coração no estádio? Por que a vida estava fazendo isso com ele justo agora, no dia de uma final que o Santos não disputava há 18 anos?

Por mais que se perguntasse, tudo que recebia de volta era um silêncio ensurdecedor. Catatônico, o menino pensava que nunca tinha visto sentido naquela história de catecismo, tinha aceitado porque a mãe finalmente permitira que ele se juntasse ao time do colégio. E agora o destino lhe pregava uma peça dessas. Analisando a situação, entendeu que tudo que lhe cabia era a resignação. Afinal, o que poderia um menino de 12 anos ante um desígnio divino?

Três anos se passaram desde aquele fatídico 17 de dezembro. Tadeu estava então no auge de seu desempenho dentro das quatro linhas pelo time do colégio. Um olheiro abordou o pequeno craque e lhe fez um convite irrecusável: um teste, vulgo peneira, no Pequeninos do Jóquei, tradicional seleiro de craques. Radiante, o menino chegou em casa depois da aula ávido para contar as novidades ao seu pai.

- Que maravilha, estou muito orgulhoso de você, Tadeuzinho. Pena que domingo às 11h00 nós temos o batizado de sua priminha. E obviamente você não deixará de comparecer por causa de um jogo de futebol.

Jogo de futebol? Como assim jogo de futebol? Quer dizer que uma peneira no Pequeninos era um jogo de futebol? A frase da irmã Celeste na última aula de catecismo então ecoava na cabeça do desolado atacante. O pesadelo se repetia e Tadeu pensava que se tratava de uma praga divina por ele ter quebrado acidentalmente os vitrais da igreja do bairro em uma cobrança de falta imperfeita semanas atrás. Dessa vez, no entanto, a ira adolescente falou mais alto dentro de Tadeu. Revoltado, disse ao pai que naquele dia se converteria ao ateísmo. Blasfemou contra o pai e o Senhor, subiu pro quarto chorando e bateu a porta como só os meninos de sua idade sabem fazer. Para piorar, lembrou que tinha uma prova de genética no dia seguinte e ele nem tinha lido o material.

Mas foi justamente naquele átimo, quando abriu o livro de ciências, que Tadeu teve uma idéia genial. Como é que não tinha pensando naquilo antes? A partir daquele instante o guri trocava a religião pela ciência e tornava-se um obcecado pela busca do Santo Graal da genética. A busca pela criação do primeiro clone humano da história. Sua vida agora tinha um novo sentido e nada o demoveria desse plano secreto.

Secreto e árduo. Com o passar dos anos, Tadeu se defrontou com mais frustrações do que conquistas em sua cruzada em busca do clone. Concluiu o colegial, formou-se em Administração, comprou uma casa e se casou com Ana Paula, isso tudo sem deixar de lado sua paixão pelo futebol. E nada de clone. No entanto, ele jamais se entregou, sabia que era uma questão de tempo. Suas noites em claro no porão da casa não seriam em vão.

Foi então que, numa fria e chuvosa madrugada, o inimaginável aconteceu. O craque cientista havia construído um chuveiro especial cuja água carregava componentes de seu próprio DNA. Segundo seus planos, um banho com duração e temperatura ideais poderia desencadear uma reação química única, gerando as condições perfeitas para a criação de um clone de quem estivesse no chuveiro naquele momento. Após centenas de tentativas, a banheira se iluminou, ouviu-se um estrondo ensurdecedor e Tadeu desmaiou. Acordaria, horas depois, ao lado do que viria a batizar como “homo sapiens arvelus”. Custou a acreditar, mas estava diante de seu próprio clone. Incrédulo, chorou e jurou que nunca mais perderia um jogo de futebol em sua vida.

Doutrinou o clone durante quatro semanas, sempre de madrugada, no porão. Orientou sua réplica com relação a tudo que dissesse respeito à rotina familiar, profissional e pessoal. Dados, datas, números, peculiaridades, segredos, planos, sonhos, não faltou nada no treinamento intensivo. Até prova ele aplicou no pupilo para se certificar que a estratégia tramada durante anos seria bem sucedida.

Eis então que lhe surgiu a primeira oportunidade de testar a brilhante invenção. O Brasil jogaria a semifinal da copa do mundo no mesmo dia e hora em que seu chefe havia agendado uma apresentação sobre o planejamento da empresa para o próximo ano. Frio e calculista, Tadeu enviou o clone em seu lugar, reservou um vôo de última hora e foi ver o Brasil em campo. Ao retornar, percebeu que tudo ocorrera impecavelmente. Gostou da idéia e começou a praticá-la a torto e a direito.

Viu o Santos ser campeão da Libertadores e até invadiu o gramado na comemoração enquanto o clone celebrava o aniversário de 10 canos de casamento num jantar à luz de velas com a esposa. Foi artilheiro e levantou o troféu do torneio interno do clube no dia do nascimento de seu terceiro filho. Mandou o clone torcer para o pai no campeonato de tranca do asilo enquanto disputava um memorável torneio de ex-alunos da faculdade. Nada mais o impedia de assistir ou jogar as partidas que quisesse: festa de 15 anos da filha, formatura do filho, aniversário do irmão, dia das mães, reunião nacional de vendas. Era delicioso ver um sonho se tornar realidade.

Realidade essa que lhe pregou uma peça. Por causa de uma dessas brechas de regulamento, Tadeu estava disputando o torneio de veteranos da cidade de São Paulo por duas equipes: o time de ex-alunos da faculdade e o time do clube. O campeonato era longuíssimo, com 128 equipes participantes. Os jogos foram afunilando até que, quando Tadeu percebeu, a finalíssima seria disputada justamente entre seus dois times. E agora?
Titubeou muito, seu coração ficou dividido mas percebeu que não podia deixar nenhum dos dois times na mão e decidiu arriscar: escalou o clone no time de ex-alunos. Pela primeira vez estariam no mesmo local. Tadeu fez o possível para se diferenciar fisicamente do clone e foi a campo na esperança do fato inusitado passar despercebido pela torcida. E até passou, ofuscado pelo maravilhoso espetáculo proporcionado pelo maldito clone. O abusado homo sapiens arverlus chapelou, tabelou, enfileirou, fez quatro gols e saiu carregado de campo como campeão e melhor jogador do torneio. Cabisbaixo e sem reação, Tadeu foi pro vestiário, tomou seu banho e saiu pela porta dos fundos, normalmente reservada aos árbitros de caráter questionável.

Precisava sair de lá e não sabia ao certo pra onde ir. Ao chegar ao estacionamento, encontrou uma calcinha e um bilhete na porta do carro. Na nota, a esposa dizia que a vida sexual do casal era outra de uns meses pra cá e lhe fazia um convite para celebrarem no mesmo local onde foram na noite em que comemoraram 10 anos de casados. Tadeu não podia acreditar no que lia. Atordoado, rumou para o escritório, apenas lá encontraria tranqüilidade naquele domingo sombrio.

Qual não foi sua surpresa ao abrir seus emails e ver uma nota do chefe carrasco elogiando o trabalho apresentado durante a reunião de planejamento. Aparentemente todos ficaram impressionados com o material apresentado e agora lhe ofereciam a promoção que ele aguardava há oito anos. As coisas não poderiam ficar piores do que aquilo e Tadeu decidiu voltar pra casa, precisava do apoio da família num momento duro como esse. Era muito sofrimento para o mesmo dia.

Foi pra casa como um zumbi. Estacionou o carro e foi buscar o jornal de esportes na caixa do correio. Para seu estupor, havia uma carta do pai, que não lhe escrevia há anos. Dentro do envelope, uma foto com pai e filho sorridentes ao lado do troféu do torneio de tranca. No verso, apenas uma frase: “lembrança inesquecível do melhor dia que passei com meu filho em toda minha vida”.

Arrastou-se de volta para casa, que estava deserta. Pela porta secreta da garagem, desceu ao porão. Nem vestígio daquele miserável. Era o retrato da melancolia e queria dormir para nunca mais acordar. Tomou outro banho na vã esperança de desaparecer naquela água mágica. Trancafiou-se no porão, de onde nunca mais sairia, e foi se deitar. Na cabeceira, “Patinando com o Alter Ego”, de Dennis D.

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