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domingo, setembro 17, 2006

Endiabrado 

Um obstinado. Assim podemos definir Paulinho. Excluído do time do pré-primário e escalado como reserva no acampamento na terceira série, sua trajetória futebolística podia ser resumida pelas palavras banco, reserva, fracasso, derrota e rejeição. Quanto mais era renegado, mais insistia no sonho, impossível para muitos que o conheciam, de se tornar um centroavante profissional.

Julgando-se um craque incompreendido, Paulinho diagnosticou o problema: a cidade de Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, estava míope diante de seu talento. Assim, na calada da noite, sem avisar amigos ou família, largou a escola e partiu de mala e cuia num ônibus para Santos. Na baixada o jovem de 16 anos começaria do zero. Do zero ao treze, aliás, sua rotina em nada se alterou: inscrição em peneiras, atuação desastrosa e fracasso retumbante. Na décima quarta tentativa, numa noite chuvosa e com campo coberto de lama e mal iluminado, Paulinho foi aceito no grupo da Portuguesa Santista.

Nosso craque ficou radiante mas logo deparou-se com uma realidade nua e crua de escassas oportunidades e problemas que devem ser driblados diariamente. Mesmo se profissionalizando pela Burrica, percebeu que o salário de terceiro centroavante não garantia sua sobrevivência e então passou a exercer a atividade de taxista nas horas vagas. No rádio do carro sintonizava as mesas redondas da vida e não desistia do sonho de criança: “um dia eles estarão falando de mim”.

E foi justamente quando sonhava acordado numa madrugada que algo curioso lhe aconteceu. O táxi estava no ponto de uma balada de Santos e quando Paulinho se deu conta seu passageiro era ninguém menos que Robinho, o prodígio do Real Madrid. Ao se aproximar da casa do craque, Paulinho não se conteve e perguntou:

- “Robinho, eu sou um grande fã seu. Sou centroavante da Portuguesa Santista e todos me chamam de grosso. Qual é a sensação de ser um craque?”

- “Bom, é muito gostoso, eu amo o que faço. É difícil descrever, mas cada caneta me arranca gargalhadas por dentro, cada golaço me dá uma prazer incrível e cada título me enche de felicidade. São sensações marcantes e inesquecíveis.”

Ao invés de inveja, aquela conversa ficou gravada na memória de Paulinho e alimentou ainda mais sua obsessão em se tornar um grande craque do futebol mundial.

Na manhã seguinte, recebeu a notícia de que o segundo centroavante, que substituiria o titular, suspenso, contraíra uma virose e estava fora do próximo jogo. Finalmente a sorte lhe sorria e domingo havia de ser um dia memorável.

Logo no início da partida, uma chance inacreditável e Paulinho furou. Ele não se deixou abater e ainda encontrou tempo para chutar duas na trave, trombar com o árbitro, pisar na bola e pôr pra dentro uma bola em que estava impedido e teria sido gol se ele não tivesse participado. Alguns companheiros já reclamavam, o técnico se via sem opções no banco mas Paulinho não esmorecia. O 0x0 persistiu até os 44 do segundo tempo, quando em lance duvidoso na área, o árbitro viu pênalti em Paulinho. Esperançoso, ele implorou ao técnico e aos companheiros para bater, sentindo que sua hora finalmente chegara. Beijou a bola, rezou e partiu com confiança. Pena que jogou a mais de um metro acima do travessão, pra ira dos 316 torcedores presentes.

Ao som do apito final, Paulinho calou e seguiu, cabisbaixo, rumo ao vestiário. Tomou um longo banho, remoendo cada lance da partida. Quando saiu do chuveiro, percebeu que estava sozinho no banheiro. Em voz alta, lamentou-se:

- “Eu daria de tudo pra ser o melhor jogador do mundo...”

Após um instante de silêncio, sentiu-se um odor estranho no ambiente.

-“Tudo mesmo?”, indagou uma voz rouca e charmosa.

Assustado, Paulinho virou e se deparou com uma criatura bizarra. Aquele garfo, o rabo e aquele par de chifres davam ao sujeito vermelho um ar familiar. Refletiu por um instante e respondeu com firmeza:

-“Tudo. Faria qualquer coisa pra me tornar um craque do futebol mundial.”

Na manhã seguinte Paulinho foi treinar normalmente e comentou com um colega o estranho episódio, afirmando que provavelmente se tratava de um sonho. No mesmo dia ficou sabendo que teria uma nova oportunidade no jogo do meio de semana.

Desta vez eram 128 os torcedores no estádio. Estupefatos, eles testemunharam um massacre da Burrica. 4x0, com quatro gols de Paulinho. Mais impressionante que o placar foi a forma como os tentos ocorreram: um de bicicleta, um do meio-campo, um após fila em seis jogadores e o goleiro adversário e um em cobrança magistral de falta. Tamanha façanha não passou em branco e dois meses depois o jogador se transferia para o São Paulo Futebol Clube.

A súbita ascensão não abalou o matador de Três Lagoas. Com uma performance espetacular, Paulinho foi campeão e artilheiro dos campeonatos Paulista e Brasileiro com média de um gol por partida. Elogiado pela imprensa, que pedia o fenômeno na seleção, o neocraque sonhava com a conquista da Libertadores quando ficou sabendo que seu destino era de fato o Real Madrid, dos galáticos Robinho, Ronaldo e Beckham. Por dentro, Paulinho sentia que a justiça tinha sido feita e queria deslumbrar os exigentes torcedores espanhóis com suas jogadas geniais.

A adaptação na Espanha surpreendeu ao mais otimista dos torcedores. Com os gols veio a disputada titularidade no plantel meregue. Ironicamente, Paulinho tomou o lugar de Robinho na equipe. A carreira meteórica parecia não abalar a nova sensação do mundo da bola.

Paulinho tinha fome de gols e suas jogadas sensacionais levaram o Real ao título da liga espanhola e da copa dos campeões. No entanto, alguma coisa estava fora da ordem. Idolatrado e invejado, ele tinha o mundo aos seus pés, tudo que sempre havia sonhado, mas algo o incomodava. Voltando de uma partida onde fez três gols no Barcelona, pegou um táxi pra casa e lembrou-se da conversa que teve com Robinho naquela noite em Santos. Lembrou-se do brilho nos olhos do craque ao descrever as sensações dentro de campo e percebeu que não sentia nada daquilo. Por mais que brilhasse dentro de campo, Paulinho não estava verdadeiramente feliz. Confuso, chegou em casa e pensou em mandar um email para o Pelé ou para o Maradona para saber se eles sentiam o mesmo.

Em meio à crise existencial, recebeu a notícia de que fora eleito o melhor do mundo pela FIFA. O que era pra ser um momento de êxtase converteu-se num pesadelo sem fim. Quanto mais vitorioso e reconhecido se tornava, mas deprimido se sentia. Na noite da entrega do prêmio, Paulinho pegou um táxi e ao invés do local da cerimônia decidiu ir ao aeroporto.

Desembarcou em São Paulo e seguiu diretamente para Santos. Era uma madrugada chuvosa e mesmo assim ele pediu pra ser deixado na porta do estádio da Portuguesa Santista. Sentia uma necessidade latente de rever aquele gramado. Pulou o muro e entrou no campo. A lama sujava seu terno Armani e a chuva lhe cobria a visão. Num passo trôpego caminhou até o vestiário.

-“Eu já estava lhe esperando, Paulo. Sei o que você quer”

A conversa foi curta, não tinha como ser diferente. Paulinho abriu seu armário e se surpreendeu ao ver seu uniforme intacto. Trocou o terno pela camisa 9 e o sapato pela chuteira. Alongou-se, fez o sinal da cruz e entrou em campo. A pequena torcida ovacionou o matador de Três Lagoas.

O jogo começou quente. Lance de linha de fundo, bola cruzada pra trás e Paulinho recebe, livre na marca da cal. Em clima de deja vu ele fura a bola a torce o tornozelo. Pra delírio da torcida.

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