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segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Futebol arte 

Florença, 01º de fevereiro de 1513. Nicolau Machiavel acorda e, ainda sonolento, admira a bela vista que tem da cidade através da cortina entreaberta. Sente-se disposto e sabe que tem muito trabalho pela frente. Entre 1499 e 1512 Nicolau fora enviado em inúmeras missões diplomáticas para as principais cortes da Europa, entre elas a de Luis XII na França e a de Fernando II, rei de Aragão. Afastado de tais obrigações, Maquiavel queria agora combinar toda sua bagagem teórica com suas experiências práticas. O fruto de tamanha empreitada seria uma obra literária sem comparação com tudo que havia sido produzido nos últimos mil anos.

O problema é que, justamente agora que dispunha de tempo, Nicolau estava completamente sem inspiração. Como que para ver se as idéias se aclaravam, decidiu vestir um de seus tradicionais robes de oficial do governo de Florença, traje que não usava já há um bom tempo. Ao abri seu armário, qual não foi sua surpresa ao deparar-se com um imenso e estranho inseto, repousando tranquilamente sobre sua vestimenta. Ao tentar remover o pavoroso animal, Maquiavel sentiu uma picada súbita e caiu desacordado.

Pádua, 9 de fevereiro de 1610. Ao concluir uma aula de astronomia na Universidade de Pádua, o incansável professor Galilei decidiu ficar na sala de aula e refletir sobre algo que não lhe saía da mente. Galileu era um notório entusiasta da teoria do heliocentrismo, atribuída a Nicolau Copérnico. Teoria esta que se opunha ao geocentrismo defendido pelo papado em Roma. Inconformado, Galileu precisava de alguma evidência contra a idéia equivocada de que todos os astros giram ao redor da terra, mas por mais que pensasse não conseguia encontrar a tal prova. Para compensar tamanha frustração, Galileu se consolava com sua última descoberta, as quatro luas de Júpiter.

Angustiado, Galileu percebeu que precisava de ar fresco e rumou para a torre da cidade, onde testaria uma de suas recentes teorias, segundo a qual os objetos caem na mesma velocidade, independente de seu peso. O professor orientou seu assistente para que subisse até o topo da torre e de lá soltasse duas pedras, uma pequena e uma grande. Ao tentar observar a queda dos objetos, Galileu teve a visão prejudicada pelo sol e foi atingido na cabeça pela pedra pequena. Desabou no solo sem esboçar reação.

Florença, 14 de fevereiro de 1503. Contratado pelo poderoso Cesare Borgia, o renomado Leonardo da Vinci acompanhava seu chefe em uma viagem de negócios até Forli. Durante a viagem, o genial artista e cientista voltou a sentir um vazio que já lhe incomodava há algum tempo. Reconhecido como o mais eclético dos gênios da Renascença, Leonardo era vítima de uma infindável curiosidade, que nem sempre era saciada por sua grandiosa criatividade. Essa tempestade de questionamentos lhe gerava uma pressão terrível para criar novas genialidades. E foi justamente na viagem que Da Vinci percebeu que este estresse tomava conta do seu corpo. “Preciso criar algo excepcional, e logo”, concluiu.

Chegando a Forli, a comitiva de Cesare Borgia foi recepcionada com uma grande festa no centro da cidade. Da Vinci, como não poderia deixar de ser, era adulado por todos durante a festa. Acostumado com isso, Leonardo passou boa parte da noite alienado em meio a suas reflexões sobre a tal obra prima que precisava conceber. A única pessoa que lhe chamou a atenção foi uma misteriosa donzela chamada Caterina Sforza. Nada, no entanto, podia livrá-lo da irritação que sentia. Frustrado, Leonardo bebeu seu vinho tinto por horas a fio, como se aquilo fosse lhe ajudar de alguma forma. Ao sentir uma tontura súbita, Da Vinci se dirigiu a um dos cômodos da casa, onde desabou sobre a primeira cama que viu.

Cidade do Vaticano, 23 de março de 1508. Conhecido tanto por sua genialidade quanto por sua personalidade forte, Michelangelo Buonarroti deixa a reunião com o papa Júlio II completamente indignado. Era de conhecimento geral que Michelangelo se considerava primeiramente um escultor e via a pintura com um imenso desdém. Mesmo assim aceitara o convite do papa para pintar o teto da Capela Sistina. Aos 33 anos, o artista já tinha no currículo a Pietá e Davi. Dessa forma, muitos diziam que Michelangelo só tinha aceitado a proposta papal em virtude do polpudo cachê oferecido.

No entanto, ele jamais esperava que Júlio II teria a coragem de lhe pedir para pintar os 12 profetas. Revoltado com o tema escolhido, Buonarroti negou-se a executar uma pintura tão banal, ao passo que o papa lhe respondeu que então deixaria o tema a critério de Michelangelo. Apesar da magnífica criatividade, o gênio precisava de pelo menos algumas horas para pensar em algo melhor que os 12 profetas. Irritado, deixou a praça São Pedro, desentendeu-se com um ambulante que vendia frutas e durante a briga foi atingido por um melão. Desmaiou no meio da rua.
Cidade do México, 21 de junho de 1970. A sensação térmica no vestiário do estádio Azteca beirava os 40 graus. Além do calor, Maquiavel estranhava quase tudo: as pessoas, as roupas, a construção. Ao invés de seu robe de oficial do governo de Florença, Nicolau vestia um uniforme idêntico ao dos demais presentes. A única diferença era o número nas costas: 9. Surpreendentemente, entendia tudo o que aquele grupo de homens dizia e, com sua inteligência privilegiada, percebeu que todos se referiam a ele como Tostão. Um homem que explicava o que parecia ser uma estratégia de guerra com pequenos botões sobre a mesa lhe passava instruções específicas de posicionamento a todo instante.

A poucos metros de Maquiavel estava Galileu. Trajava a camisa 8 e era o único a tragar uma substância com gosto estranho. Rapidamente Galileu recuperou a consciência e percebeu que era uma espécie de líder a quem todos recorriam durante a discussão sobre algo que parecia de extrema importância para o grupo. Todos falavam em vitória e aquele clima contagiou o cientista de Pisa, ali chamado de Papagaio.

Da Vinci sentiu falta da extensa barba mas se deu por satisfeito com o bigode. Com a camisa 11 nas costas, começou a refletir sobre os números primos quando foi alertado pelo homem que lhe dera a camisa sobre a importância do confronto. Prestou atenção às instruções e se acostumou a ser chamado de Riva. Curioso contumaz, Da Vinci adorava a situação e não via a hora de enfrentar a tal Itália.

Michelangelo já estava acostumado em ser o centro das atenções. O que ele não podia entender era a cor de sua pele, o uniforme apertado e o número 10 atrás de sua camisa amarela. Procurando esquecer a discussão com o papa e a briga com o ambulante, abraçou os homens ao seu lado, rezou junto com eles e seguiu o camisa 8 para fora daquele recinto.

Ao subir para o gramado os quatro gênios entraram em transe. Maquiavel analisou o oponente de camisas azuis e começou a refletir sobre a melhor forma de conquistar o território adversário e manter o poder. Galileu olhou pro sol a pino e lembrou-se de Copérnico e do heliocentrismo. Da Vinci rapidamente estimou o público presente em cerca de 107 mil pessoas, ao passo que Michelangelo se lembrou do Coliseu e respondeu aos acenos dos homens com seus chapéus estranhos. O homem de preto apitou e teve início a batalha épica.

18 minutos depois Maquiavel cobrou o lateral para Da Vinci. O inventor levantou a cabeça e cruzou com perfeição para Michelangelo. Genial como de costume, o camisa 10 acertou uma cabeçada magistral e levou a multidão ao delírio. Era o centésimo gol brasileiro em copas.

Na seqüência, Da Vinci, vulgo Patada Atômica, desperdiçou uma série de faltas próximas à área, sempre chutando por cima do gol. Lamentou a falta de inspiração e voltou a pensar em sua obra prima. No outro lado do campo, Felix segurava as investidas de Gigi Riva. Aos 38 minutos, Clodoaldo se imaginou genial, enfeitou de calcanhar e viu Boninsegna driblar Félix para empatar a partida. A Itália não perdia há mais de 2 anos e não se deixaria abater facilmente. Fim de primeiro tempo e jogo indefinido. Galileu precisava de um cigarro.

O tal homenzinho dos botões incendiou a esquadra no vestiário e pediu que equipe jogasse com inteligência. Já Carlos Alberto Parreira apostava no excelente preparo físico que tornara o Brasil impossível no segundo tempo sob o sol escaldante dos gramados mexicanos. Alheio às orientações, Galileu tinha percebido que não poderia se livrar da marcação italiana. Então chamou Clodoaldo de canto e determinou que eles invertessem seu posicionamento para a segunda etapa.

O segundo tempo começou com o Brasil melhor, técnica e taticamente. Jairzinho, inteligente, puxava a marcação de Fachetti e abria espaços para Carlos Alberto. Aos 21 minutos, após troca de passes entre Jairzinho e Maquiavel, Galileu desferiu um cometa de esquerda e venceu Albertosi: Brasil 2x1. Cinco minutos depois Galileu recebeu a bola novamente e, com maestria, lançou Michelangelo na área. O rei ajeitou de cabeça para o Furacão empurrar a bola e anotar o terceiro gol brasileiro. Incapaz de conter a emoção, Maquiavel explodiu em lágrimas. Naqueles instantes um filme lhe passou pela mente: a bolada no olho um ano antes, a ameaça de abandono prematuro da carreira, os questionamentos sobre a parceria com Pelé. Ao olhar o rei, do outro lado do gramado, Maquiavel pensou em Cesare Borgia e se inspirou a escrever o Príncipe.

Aos 41 minutos o time brasileiro pintou a obra prima do Renascimento do futebol. Após uma ode ao jogo coletivo, a bola chegou a Jairzinho, que enxergou Michelangelo no meio. Ereto como Davi, Michelangelo rolou para Carlos Alberto. O capitão sacramentou a epopéia brasileira e gravou na memória de todos o estilo de jogo que encantou o planeta. O Brasil era tricampeão do mundo.

Terminada a partida, em meio à invasão generalizada, os jogadores partiram para cima de Da Vinci com o intuito de raspar seu bigode. Assustado, mas sempre criativo, o gênio se safou, alegando que iria se casar. Durante a comemoração Leonardo lembrou-se de Caterina Sforza, de seu sorriso enigmático e finalmente teve a inspiração para sua próxima pintura. Perto dali, Galileu traçava um paralelo curioso: antes da copa, muitos achavam que o mundo gravitava em torno de Havelange. O mundial provara que o mundo gira mesmo em torno de Pelé, ao passo que os demais companheiros de ataque gravitam ao redor do rei, assim como as luas de Júpiter. Estava pronta sua mais nova teoria.

Carregado pela multidão ensandecida, Michelangelo refletia. Lembrou-se da contusão de 66 e pensou na Pietá. Riu dos atletas de cueca e pensou em Davi. Vendo sua majestosa carreira em retrospectiva e ainda buscando inspiração para o teto da capela sistina, pensou em 1958 e decidiu pintar “Deus separando a luz das trevas”. Lembrou-se do Chile em 62 e propôs-se a pintar “O sacrifício de Noé”. Maravilhado com a celebração que assistia ao seu redor, olhou para os céus, estendeu a mão esquerda e agradeceu. Pintaria “A criação de Adão” em homenagem a 1970.

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