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domingo, abril 27, 2008

Gongóia, Arvelón e o Ranjo 

Lauar, 1346. A capital da Gongóia era um retrato fidedigno da situação deste pequeno reino escondido entre as montanhas da Caruséia. Destruição, caos, barbárie e anarquia aprisionavam os habitantes e afugentavam os visitantes. Algo inimaginável para um povo acostumado à prosperidade, à ordem e à harmonia que predominaram em larga escala antes da Grande Convulsão.

Um sábio e corajoso ancião explicava a um grupo de jovens que a crescente disputa de poder e a ganância comercial das duas etnias que dominavam Gongóia causaram tamanha ruptura social e o estado de calamidade atual. Questionado por um garoto se o temido Arvelón conseguiria restabelecer a ordem, o velho calou, apanhou seu cajado e, com o semblante fechado, caminhou de volta para sua aldeia.

Arvelón era o mais temido assassino da Caruséia. Sobre sua figura pairavam lendas que causavam calafrios no mais indiferente habitante daquele reino. Dizia-se que aos seis anos decapitou o próprio pai, comeu o fígado da mãe morta e que a partir disso foi criado por uma tigresa na floresta do baixo Kandor. Exímio caçador e guerreiro, aos 15 anos invadiu, saqueou e massacrou tudo que encontrou pela frente, assumindo o controle das províncias meridionais, que a partir de seu domínio ficaram conhecidas como Trevas. Ainda segundo as lendas, Arvelón teria extirpado o próprio coração e que por isso jamais vertera uma lágrima sequer. Com a Grande Convulsão, o tirano aproveitou-se para instaurar o caos no reino, dizimar todo e qualquer opositor e auto proclamar-se imperador da Gongóia. Tinha início uma era de terror sem precedentes.

Um de seus princípios mais rígidos era a total ausência de diversão e prazer entre os povos, pois segundo Arvelón o hedonismo enfraquecia os homens e dispersava os guerreiros. Por isso, ao assumir o poder, seu primeiro decreto foi a proibição da música, do teatro e da dança em Gongóia. Especificamente, o grande alvo do déspota era o Ranjo.

Uma mistura de dança com luta envolvendo bolas e arcos, o Ranjo era a expressão máxima da cultura Gongol e única manifestação artística capaz de unir todas as idades, etnias e classes sociais do reino, além de superar as rivalidades regionais. Para os críticos, o Ranjo alienava o povo. Para seus defensores, era a válvula de escape que permitia aos gongóis sentirem-se felizes e vencedores, além de garantir a paz na comunidade. Já para Arvelón, a prática do Ranjo significava a decapitação sumária de todos os participantes e espectadores envolvidos.

Como seria de se esperar, a proibição do Ranjo gerou reações radicais na população e o conseqüente surgimento de movimentos clandestinos em prol da dança. Dessa forma, o governo totalitário criou um forte aparato de repressão que incluía uma polícia secreta, espionagem, práticas de delação premiada e tortura, membros infiltrados e acompanhamento detalhado de tudo que dissesse respeito ao Ranjo. Banir a tal dança contagiante tornara-se uma obsessão do regime e a tensão entre ditadura e movimentos rebeldes alcançara patamares insustentáveis.
Pessoalmente engajado na destruição da paixão popular, Arvelón foi avisado sobre um ritual clandestino em que a tal dança seria praticada. Aconselhado por seus espiões, disfarçou-se de camponês e partiu com parte de sua polícia secreta antes do sol nascer rumo ao suposto local da disputa. O tirano estava tomado pela ira e sedento por sangue. Sua intenção era capturar os milhares de presentes, sacrificá-los em praça pública e dessa forma dar o exemplo derradeiro ao restante da população, que insistia em confrontá-lo com a prática daquela dança subversiva.

O campo de disputa ficava na caverna de Baquis, famosa por seu lago de águas cristalinas e cachoeiras que segundo o povo abrigavam duendes e até mesmo sereias. Misturado à multidão, o ditador observou o início do que parecia ser um ritual inebriante. Para sua surpresa, os dançarinos eram crianças. Estavam divididos em duas equipes e utilizam as tais cachoeiras como demarcação da zona de disputa. Quanto à platéia, era impossível contar os presentes, mas Arvelón nunca tinha sentido uma atmosfera assim. As pessoas sorriam, se confraternizavam e se maravilhavam com o espetáculo. Era como se, durante aqueles 90 minutos de magia, não houvesse fome, violência ou repressão. Os meninos em campo faziam movimentos angelicais para deleite da multidão. A bola fluía de maneira graciosa, os fundamentos eram perfeitos e a violência inexistia.

No último momento do embate, até ali empatado, um menino negro apanhou a bola no início de seu terreno. Balançando o corpo ao som dos suspiros da platéia, colou a bola em seu pé e dançou com sete adversários. Já na área adversária, parou por um instante. Fitou atentamente aquele camponês na torcida, mirando-o no âmago da alma. Era como se aquele guri reconhecesse o déspota sem coração. Respirou fundo, dançou com os quatro adversários que faltavam, encobrindo um a um com a bola e anotou o ponto decisivo aos pés da cachoeira. A multidão, que jamais presenciara um lance mais celestial, invadiu o campo de disputa e carregou o negrinho genial. A ovação era geral e a massa, insandecida, se abraçava e se beijava num momento de êxtase.

Os membros da polícia secreta aguardavam o comando de Arvelón para ordenar a prisão de todos os presentes. No entanto, o inimaginável aconteceu. Aos prantos, o ditador identificou-se, caminhou até o centro do campo e pediu a palavra. A essa altura ninguém sabia como reagir. Alguns tiveram medo e pensaram em fugir. A polícia secreta estava boquiaberta, ao passo em que outros se contagiaram com a reação daquele homem gelado. No que foi considerado o discurso mais emocionante da história da Gongóia, Arvelón fez uma declaração de amor ao Ranjo e tratou de legalizar a dança a partir daquele instante, para delírio da massa. Continuou dizendo que aquele gingado representava os movimentos da liberdade, da democracia e da felicidade e que dessa forma não poderiam ficar restritos a um mero campo de dança. Concluiu com sua renúncia e com a convocação de eleições gerais. Chorando, foi aclamado pela população incrédula, subiu em seu cavalo e galopou no horizonte.

Aqueles 90 minutos de ternura entrariam para a história como a Revolução Dançada e devolveram a paz e a alegria ao distante reino da Gongóia. Sorridente, o sábio ancião balançou a cabeça afirmativamente enquanto as crianças celebravam com sua dança libertadora.

domingo, abril 06, 2008

"Guia dos curiosos...fanáticos" 

Surpreender leitores exigentes e fanáticos como aqueles que acompanham futebol na Trivela não é tarefa das mais fáceis. Pois é justamente isso que Luiz Fernando Bindi consegue com seu despretensioso e agradável “Futebol é uma caixinha de surpresas”.

Figurinha carimbada em fóruns como o “Loucos por Futebol” da ESPN Brasil e a própria revista Trivela e notório pela especialização em distintivos de clubes, Bindi empenhou-se na arriscada empreitada de consolidar curiosidades sobre o esporte mais popular do planeta. Costumamos ressaltar neste espaço a carência de literatura futebolística de qualidade no Brasil, mas isso não se aplica ao gênero sobre o qual o autor se debruça neste livro. Com repertório rico, o Bindi dribla os clichês habituais com categoria.

As inúmeras curiosidades descritas são agrupadas em capítulos tão variados quanto “árbitros”, “medicina” e “dinheiro”. Abrindo cada capítulo com uma definição à la dicionário, a idéia é justamente dar um aspecto temático a cada sub-divisão. Em geral funciona bem, mas vez por outra o leitor pode ser flagrado se questionando por que a história do atacante que comemorou um gol seminu é contada no capítulo “Onze”, entre outros pequenos deslizes semelhantes.

Fica explícito que Bindi possui um conhecimento vastíssimo de futebol. Dessa forma, navega confortavelmente com seus causos no tempo e no espaço: dos primórdios do futebol na Inglaterra ao mundial de 2006, das divisões amadoras da Paraíba à liga Neozelandesa. Deve-se destacar que não se trata apenas de um livro frio ou burocrático bem escrito por um louco por futebol. Além de conhecimento, Bindi faz transparecer a paixão que tem pelo esporte, o que valoriza, e muito, o conteúdo apresentado.

Mesmo assim, as expectativas devem ser ajustadas. Leitores ávidos por material profundo e analítico poderão se frustrar, assim como aqueles que forem sedentos ao capítulo “Distintivos”, relativamente magro se pensarmos que o autor possui uma módica coleção com 50 mil escudos de times.

Considerando prós e contras, o livro é muito bom e sua leitura, recomendada aos fanáticos e curiosos. O conteúdo é leve, diversificado e prazeroso. Merecem destaque histórias como a da torcida do interior que desfilou num elefante após o time bater o São Paulo; a relutância inicial de Telê Santana em disputar a Libertadores; a expulsão de De La Peña por esmagar os testículos do árbitro; as maracutaias na província Indiana de Goa ou o jogador do Botafogo que contraiu uma DST em relação extraconjugal e pediu para ser engessado da cintura para baixo enquanto se curava do probleminha. São excentricidades como essas que fazem jus ao título do livro e à própria definição do futebol.

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