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domingo, junho 22, 2008

"Inseparáveis" 

Ela estava lá presente na maternidade quando do momento de seu nascimento, apesar dele não se lembrar disso. Afinal, ainda não eram íntimos, ela não representava nada para ele, tão entretido com as descobertas das primeiras horas de vida.

A tal intimidade veio na infância. Fosse em casa, na escola ou na rua, o convívio praticamente diário começou a fazer deles melhores amigos, se é que podemos chamar assim. No colégio ele percebeu que ela poderia dar outro significado à sua vida, pois graças a ela ele recebia a atenção que às vezes faltava em casa. Ao lado dela ele se divertia, mas também havia momentos de pressão e desconforto. Diante dessas situações latentes, lhe ocorreu que aquilo poderia ser mais sério do que parecia, mas subitamente deixou a reflexão de lado. Não era do seu feitio.

Aos 15 anos foi acometido pela rebeldia e inconseqüência juvenis. Curiosamente, poupo-a dos questionamentos quase irrestritos. À época, acreditava que seu namoro tinha futuro, mas também sabia que havia decisões mais complexas a serem tomadas.

Veio o exército e com ele uma fase clandestina. Não era usual que os soldados recebessem visitas, mesmo porque não havia tempo para aproveitá-las. Como consolo, restavam os finais de semana de convívio intenso. Para matar o tempo e aplacar a saudade, dedicou-se com afinco aos estudos.

Na faculdade ele amadureceu e passou a encará-la de outra forma. Aprendeu a dividi-la com os demais, a buscar proteção e por vezes fuga nela, que demonstrava a habitual compreensão. O relacionamento estava consolidado pelos anos de confiança e isso servia de alicerce para os inevitáveis momentos de crise.

Calhou de ela, onipresente, influenciá-lo também no trabalho. Habitualmente sisudo, fez amizades e esboçou uma vida social por causa dela, em nome dela. Na presença dela, ela era diferente, era como se estivesse mais à vontade. E isso de certa forma ajudava.

Percebia aos poucos que os segredos de um relacionamento residem na renúncia, na empatia e na tolerância. Mais de uma vez ele não tinha cabeça pra ela, mas novamente olhava o todo, olhava pra trás e pra frente e decidia seguir adiante. Nesta mesma época, passou a lidar com pressões que desafiavam sua paz de espírito. Como quem descobre algo novo numa namorada antiga, ele viu nela uma potencial válvula de escape, já que ela lhe oferecia entendimento, sinceridade e esperança sem exigir nada em troca.

Neste contexto, o casamento veio como uma decisão natural. Ele se sentia mais maduro, tinha o apoio da família e sentia que estava diante de uma relação duradoura. Os anos lhe trouxeram a sabedoria necessária para sobreviver aos conflitos, distinguindo problemas pontuais de crises crônicas que são incontornáveis quando não há mudança de atitude. Durante os dias de calmaria ou de tempestade, ele conseguia associá-la a momentos marcantes de diversão, felicidade e até mesmo catarse. Percebeu que, possivelmente, ela presenciara os melhores momentos da vida dele até então.

Sentia uma estabilidade que lhe permitiu traçar planos e decidiu iniciar uma família. A chegada de um guri mudou de vez a sua vida. Com o menino ao seu lado, sentiu-se rejuvenescido e o que era um par virou um trio. Juntos, ele e ela reviveram o passado e experimentaram todos os sentimentos que uma viagem como essa permite. O saudosismo pelos dias de pureza, a melancolia pela inocência perdida, o impulso de fazer tudo de novo, a maturidade para ensinar, a bondade para proteger, a serenidade para entender. Acima de tudo, havia a volúpia de fazer com que na relação que o guri teria com ela tudo fosse melhor. Apenas as virtudes, sem os erros por ele cometidos.

Tamanho desafio tomou grande parte do seu tempo. É claro que nem tudo correu como esperado. Ele viu o filho sofrer por causa dela, repetir muitos de seus erros e dedicar-se a ela de corpo inteiro. Era possível ver nos olhos do menino o mesmo brilho, o mesmo fascínio que ele tivera e de certa forma ainda tinha por ela. De modo geral, foram felizes e escreveram histórias marcantes juntos.

As linhas amargas foram igualmente escritas ao lado dela. O falecimento do pai, as crises financeiras e profissionais, a perda de um amigo querido. Quando tudo indicava que ele iria fraquejar, ela convenceu-o de que a vida não merece ser levada tão a sério. E, por mais banal que isso soe, permitiu a ele se levantar.

O outono da vida lhe trouxe uma aposentadoria recheada de incertezas. Teve que encarar a perspectiva de se tornar um peso, um inútil e de aprender a conviver com o ócio, fazendo o máximo possível dele. As próprias condições físicas lhe trouxeram o receio de que seu relacionamento com ela não teria mais a intensidade ou a freqüência dos tempos de juventude. Ledo engano. Como em tantas outras fases, souberam adaptar-se um ao outro. Um prazer inesperado deste período foi assistir ao nascimento do primeiro neto e principalmente a preocupação do filho em incluí-la na vida do menino, como se essa fosse uma tradição de família. A relação do avô e do neto com ela foi bem mais prazerosa do que tinha sido com o filho, uma vez que não havia mais as utopias, as obrigações e as angústias do passado.

Tamanha longevidade fez com ela lhe fizesse companhia até mesmo quando a saúde deixou de fazê-lo. Enfraquecido, ele não deixou lugar para grandes rancores ou frustrações. Sabia, a esta altura, que havia pouco a fazer além de curtir a presença dela até o final. De seu lado, ela se mostrava mais uma vez um poço de compreensão. Da mesma forma que estava, discreta, naquele quarto de maternidade, não arredou pé da unidade de terapia intensiva. Por vezes sabia que nem era notada, mas isso já não importava mais.

Se na infância não havia sentido fazer reflexões, agora ele decidira dedicar seus últimos momentos a analisar sua relação com ela. Pura, franca, intensa, infantil, transparente, direta, freqüente e longa, os adjetivos retratavam quão completo e especial tudo tinha sido. Ninguém, afinal de contas, havia passado tanto tempo com ele e presenciado todas as fases de sua vida. Nem mesmo sua mãe, seus amigos ou sua esposa. Ela era uma espécie de síntese da existência dele, de sua relação consigo mesmo, de suas aspirações, realizações e memórias. Em meio a este fluxo caótico de reflexões, imaginou que a própria consciência, nem esta tão presente em sua vida quanto ela, lhe escapava. Num último rompante de racionalidade, apanhou lápis e papel e deixou sobre o criado mudo uma nota com sua vontade derradeira.

Respeitando este desejo, ela, sua eterna bola de futebol, foi enterrada junto dele.

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